LABATE, Beatriz Caiuby
A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos, Campinas, SP: Mercado de
Letras, São Paulo, SP: FAPESP, 535 p., ISBN 8585725-037-X
por Leandro Okamoto da Silva[*] [ leandro.okamoto@estadao.com.br]
A palavra "ayahuasca" é de origem Quéchua e
significa, segundo Eduardo Luna, "liana dos espíritos" (LUNA, 1986),
pois possibilita àquele que a bebe estabelecer contato com o mundo dos
espíritos. Essa crença é amplamente aceita pelos diversos grupos de usuários da
bebida, inclusive em seu uso nos centros urbanos. Outros nomes pelo qual a
substância é genericamente conhecida são: "daime", "vegetal",
"oaska", "nixi pae", "yajé", "capi" e
"cipó", entre outros. O seu uso, assim como a sua composição, pode
variar de acordo com o contexto cultural no qual o chá é ingerido, podendo ser
consumido para fins de guerra, religiosos, para a cura, para o lazer, bem como
para fins lúdicos. No Brasil, seu uso principal entre os grupos não-indígenas é
religioso.
Em relação aos estudos existentes sobre o consumo urbano, há a
predominância de pesquisas sobre as "igrejas ayahuasqueiras", com
maior concentração de trabalhos que enfocam uma vertente específica do Santo
Daime. Os primeiros trabalhos sobre as religiões ayahuasqueiras datam da
primeira metade da década de 80 e se intensificam nas décadas seguintes.
Abordam questões diversas, como o crescimento e desenvolvimento das igrejas,
sincretismos e ecletismos, cosmologias, o processo de legalização e legitimação
do consumo, etc.[1]
O livro A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos
foi escrito com base na pesquisa realizada pela antropóloga Beatriz Caiuby
Labate para sua tese de mestrado em Ciências Sociais na Unicamp, defendida em
2000 e agraciada com o prêmio "Melhor Tese de Mestrado em Ciências Sociais
do Brasil", no mesmo ano, pela Associação Nacional de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (ANPOCS). A obra complementa seu livro anterior, O uso
ritual da ayahuasca, onde Labate organiza trabalhos de especialistas das
diversas áreas de conhecimento sobre o consumo da substância em contextos
culturais diversos. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos aborda
um tema novo nas pesquisas sobre a ayahuasca: o surgimento de novos grupos
consumidores da bebida, ou neoayahuasqueiros, nos grandes centros urbanos.
Esse fenômeno é decorrente do processo de expansão geográfica das chamadas
"religiões ayahuasqueiras", isto é, o Santo Daime, a União do Vegetal
(UDV) e a Barquinha, a partir da década de 1980.
O termo neoayahuasqueiro foi cunhado por Labate e se refere
aos grupos e indivíduos que, além de consumirem a ayahuasca,
"reinventam" e "recriam" seus rituais e cosmologias,
fortemente influenciados pelas terapias New Age, por orientalismos
(Osho, ioga, meditação, etc.), pela psicologia (transpessoal e junguiana), por
experimentalismos artísticos (artes cênicas e música), pelo curandeirismo
andino e pelas próprias religiões ayahuasqueiras tradicionais.
Dois conceitos são fundamentais para a compreensão da obra: as
noções de campo ayahuasqueiro e de rede ayahuasqueira. A
primeira diz respeito aos integrantes de um universo de consumo da bebida que
tem, em um de seus pólos, as religiões ayahuasqueiras e, em outro, os neoayahuasqueiros.
O campo ayahuasqueiro brasileiro encontra-se, segundo a autora, em
expansão, na medida em que "é marcado por um processo de fragmentação e
projeção múltipla e crescente que promove a criação de novos grupos,
desmembramentos e fusões" (p. 492). Vale realçar que essa é uma
característica própria do universo ayahuasqueiro brasileiro e abrange também o
surgimento e desenvolvimento das religiões ayahuasqueiras, fortemente marcadas
por cisões e rupturas.[2] A segunda categoria, rede
ayahuasqueira, descreve o espaço onde ocorre o fluxo constante de
"conhecimentos, informações e substâncias" (p. 491). Mais do que a
simples mercantilização da ayahuasca, a relação entre os componentes do campo
ayahuasqueiro é permeada pela noção de sacralidade da substância e por
disputas de poder relativas à legitimidade de cada grupo. Para a antropóloga,
essa rede está inserida no campo ayahuasqueiro brasileiro, indo além das
fronteiras nacionais e interligando grupos tidos como tradicionais (Santo
Daime, UDV e Barquinha), curandeiros peruanos e xamãs provenientes do mundo
desenvolvido.
A pesquisa se origina da própria experiência da autora com a
ayahuasca em diferentes contextos, como a UDV, o Santo Daime, o xamanismo
andino e com os neoayahuasqueiros. Labate encontra na liminaridade
entre a academia e a experiência com o psicoativo um locus
privilegiado de observação do fenômeno.
São diversos os méritos de seu livro. Entre eles, destaco a
cuidadosa análise do papel do pesquisador sobre fenômeno ayahuasqueiro e a
discussão teórica sobre as ferramentas à sua disposição. Labate lança, com
isso, as bases de uma antropologia ayahuasqueira que extrapola os
limites da academia e influi em questões internas dos grupos estudados, como
questões relativas à auto-representação e institucionalização dos mesmos. Essa
mesma antropologia integra o campo ayahuasqueiro, uma vez que facilita
e difunde o trânsito de informações e conhecimentos entre os diversos grupos.
Outro ponto relevante refere-se à relativização de conceitos
binários como as noções de sagrado e profano, usos legítimo e ilegítimo, e
pesquisador e objeto. Há, dentro do campo ayahuasqueiro brasileiro,
uma tensão constante entre os grupos no que se refere à aceitação de lideranças
e formas de uso da ayahuasca. As desavenças existentes mostram que uma visão
dualista desse universo seria, no mínimo, ingênua. Os novos grupos tendem a
assumir uma posição ambígua em relação ao uso tradicional da ayahuasca, por um
lado negando-o - de forma a dar validade ao uso que eles próprios fazem - e,
por outro, buscando estreitar relações com suas matrizes, de modo a manter o
abastecimento da bebida e, também, para afirmar a própria legitimidade.
A análise dos fenômenos observados tem como pano de fundo a
discussão sobre a inserção dos psicoativos na Pós-Modernidade. Labate inclui a rede
ayahuasqueira brasileira em uma rede globalizada de consumo de
psicoativos, responsável pelo surgimento de novos fenômenos como o turismo
psicodélico e xamânico, assim como a intensificação do trânsito de xamãs e
neoxamãs peruanos e de outras nacionalidades no universo ayahuasqueiro
brasileiro. A ayahuasca, no contexto pós-moderno, está associada a um projeto
de auto-conhecimento que se encontra em sintonia com a "ênfase
contemporânea, quase obsessiva, na busca de si mesmo" (p. 91). Trata-se da
assimilação e transformação da cultura do outro e da natureza. A autora,
contudo, confere aos arranjos existentes no Brasil uma especificidade própria
em decorrência de suas matrizes culturais, que lhe conferem grande riqueza e
variedade simbólica.
A limitação do livro está na desigual "dosagem" dos
assuntos ao longo da obra. Das 535 páginas, 298 (três capítulos) descrevem a
etnografia de um único centro neoayahuasqueiro, o Caminho do Coração,
que funciona, segundo a autora, sobre o tripé Santo Daime –
Psicologia/"Nova Era" – Orientalismos. Apenas 89 páginas (um
capítulo) tratam dos outros centros. A leitura da etnografia do Caminho do
Coração, embora precisa e cheia de detalhes, torna-se por vezes cansativa,
enquanto o curto capítulo sobre as atividades de outros tipos de neoayahuasqueiros
deixa um gostinho de "quero mais".
A introdução, embora extensa (74 páginas), é pertinente e
enriquece sobremaneira o entendimento sobre os caminhos da pesquisa. Contudo, a
descrição das religiões ayahuasqueiras, nela contida, é breve e pode dificultar
o entendimento da presença dessas matrizes nos centros neoayahuasqueiros
por leitores pouco familiarizados com o assunto.
O livro tem boa diagramação, com uma quantidade razoável de fotos,
e foi escrito em uma linguagem fluída e agradável. Engana-se, entretanto, quem
pensa ser uma obra de fácil leitura. A quantidade de informações e a qualidade
da análise e das questões levantadas conferem à obra um local de destaque na
bibliografia brasileira sobre o tema.
Destaco, por fim, o mapeamento dos locais para o consumo da
ayahuasca na cidade de São Paulo, apresentado no final do livro. São listados
30 endereços, entre igrejas daimistas, centros udevistas, xamãs e neoxamãs,
centros holísticos, etc. Esse mapeamento possibilita, além de uma fácil
visualização da abrangência do campo ayahuasqueiro na cidade, a divulgação
desses mesmos centros.
O livro pode ser dividido em 3 blocos principais: os contornos
teóricos e existenciais da pesquisa, a etnografia do Caminho do Coração e as
redes de consumo da ayahuasca. Falemos agora, brevemente, sobre cada uma dessas
partes.
A introdução poderia ser, por si só, um livro à parte. A autora
apresenta seu histórico de pesquisa, fornece um panorama sobre as religiões ayahuasqueiras
e introduz a questão da reinvenção da ayahuasca nos centros urbanos. O ponto
principal, contudo, que justifica o seu enquadramento como um bloco à parte,[3] diz respeito à profunda discussão
levantada sobre os desafios de se estudar o fenômeno da ayahuasca, sobre a
metodologia empregada e sobre as questões teóricas que norteiam sua análise. O
grande zelo e cuidado na introdução provavelmente se justificam pela própria
relação afetiva e ideológica da autora com a ayahuasca. Labate é ativa
participante do universo ayahuasqueiro, tendo se "fardado" em uma
igreja daimista de São Paulo. Refletindo sobre a sua dupla inserção como
antropóloga e ayahuasqueira, a autora não esconde as dificuldades e
ambigüidades de se ter "um pé em cada barco" - pelo contrário,
encontra aí uma posição privilegiada.
Os capítulos 1, 2 e 3 trazem a etnografia do Caminho do Coração,
centro holístico-terapêutico localizado em São Paulo, fundado por um
ex-daimista e que promove atividades diversas com a ayahuasca (daime).
O primeiro capítulo descreve a constituição do centro a partir das
narrativas de seus principais membros. São também analisadas as principais
atividades oferecidas pelo centro, bem como o perfil de seus freqüentadores.
O segundo capítulo trata dos rituais do Caminho do Coração. Está
dividido em três partes. Na primeira, são descritos e analisados os rituais com
o daime,[4] os grupos existentes no centro e suas
orientações e o espaço ritual. Labate realiza aproximações e afastamentos entre
as atividades do grupo e atividades de outras tradições, além de analisar a
utilização da bebida em práticas psicoterápicas e vivências. A segunda parte do
capítulo aprofunda a análise da coexistência de elementos culturais diversos no
Caminho do Coração ao abordar a constituição do hinário de seu fundador.[5] Labate investiga a presença da
influência do Santo Daime (com seus elementos de Umbanda e Espiritismo), de
referenciais "Nova Era" de cunho terapêutico e de orientalismos,
principalmente da filosofia pregada pelo guru indiano Rajeneesh (Osho). A
autora discute também a eficácia do mecanismo dos hinários tanto no Santo Daime
como na práxis religiosa do centro observado. A última parte desse capítulo faz
reflexões a respeito do uso ritual e profano da ayahuasca e sobre as
identidades e rixas existentes no campo ayahuasqueiro. Essa parte analisa ainda
os processos de legitimação dos grupos e os aspectos materiais da rede
ayahuasqueira, isto é, da produção e circulação da substância entre os diversos
grupos.
O terceiro capítulo trata da dimensão simbólica do Caminho do
Coração. Ao abordar sua cosmologia, Labate busca compreender se há uma unidade
nesse sistema e qual mecanismo lhe dá coerência. São focados três pontos
principais: as aproximações e afastamentos da cosmologia do Caminho do Coração
com a do Santo Daime, o uso terapêutico da ayahuasca e a inserção de elementos
da filosofia e religiosidade oriental na cosmologia do grupo.
No quarto capítulo, a análise sobre os neoayahuasqueiros é expandida
para diversos outros grupos com os quais a autora manteve contato durante a
pesquisa. Esse capítulo final torna mais claros os contornos do campo e rede
ayahuasqueiras, apresentando um universo rico em usos e reinterpretações da
ayahuasca em diferentes contextos. A autora aprofunda a discussão sobre as
novas tendências de consumo. Discute também disputas existentes dentro desse
universo acerca das noções de tradição e legitimidade, através do fluxo de
novos personagens que relativizam e contrastam a noção de "moderno" e
"tradicional".
São abordados, ainda, assuntos como: o surgimento de um tipo de
turismo psicodélico e xamânico; o surgimento de novas modalidades de
psicoativos, como a juremahuasca; os psiconautas. Discorre, também, sobre
estudiosos que descartam quase que totalmente a dimensão religiosa da
substância e buscam na experiência a exploração de áreas desconhecidas da mente
humana, sendo, portanto, responsáveis por boa parte da literatura existente
sobre o assunto.
O saldo final da leitura da obra é positivo: o livro de Beatriz
Labate é instigante e remete, independente da posição e da ideologia do leitor,
à reflexão sobre o fenômeno da ayahuasca. A autora não dá respostas
definitivas, pois sabe que não as tem, porém questiona de maneira incessante e
inteligente.
Ela exerce a função de um xamã (ao guiar seus clientes/pacientes
na viagem das visões) guiando o leitor em meio a um verdadeiro caos
terminológico, um mundo de "neos" que parece não ter fim nem direção,
até o porto seguro de uma conclusão bem articulada e coerente. A reinvenção
do uso da ayahuasca nos centros urbanos torna-se, desde já, leitura
obrigatória para novos pesquisadores, curiosos, religiosos ou não, e outros
interessados no assunto dos psicoativos, e mais especificamente, no da
ayahuasca.
Texto publicado em: http://www.pucsp.br/rever/resenha/labate01.htm
Bibliografia
COUTO,
Fernando La Rocque. Santos e xamãs. Dissertação de mestrado em
Antropologia Social, Unb, Brasília, 1989.
GOULART,
Sandra. As raízes culturais do Santo Daime. Dissertação de mestrado em
Antropologia Social, USP, São Paulo, 1996.
________________.
Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese de
doutorado em Ciências Sociais, Unicamp, Campinas, 2004.
GROISMAN,
Alberto. Eu venho da floresta: um estudo sobre o contexto simbólico do
uso do Santo Daime. Florianópolis, Editora da UFSC, 1999.
LABATE,
Beatriz Caiuby e ARAÚJO, Wladymir Araújo. O uso ritual da ayahuasca.
Mercado das Letras, Campinas, 2002.
LUNA, Luis
Eduardo. Vegetalismo: shamanism among the mestizo population of the
Peruvian Amazon. Estocolmo, Almquist and Wiksell International, 1986.
MACRAE,
Edward. Guiado pela Lua: xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto
do Santo Daime. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1992.
SILVA,
Leandro Okamoto. Marachimbé veio foi para apurar: estudo sobre o
castigo simbólico, ou peia, no culto do Santo Daime. Dissertação de mestrado em
Ciências da Religião, PUC, São Paulo, 2004.
Notas
[*] Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP, onde defendeu
dissertação sobre o castigo simbólico na religião do Santo Daime, em 2004.
[1] Como referência de leitura, recomendo COUTO (1989),
MACRAE (1992), GOULART (1996 e 2004), GROISMAN(1999) e LABATE e ARAÚJO (2002)
[2] Para um aprofundamento no tema, ver GOULART (2004).
[3] Esse enquadramento é meu e não da autora.
[4] Utilizamos a terminação "daime" de acordo com o
exposto pela autora. No centro analisado as pessoas se referem à bebida dessa
forma.
[5] Um hinário é um conjunto de hinos, canções de caráter
sagrado, que são supostamente "recebidos" do mundo espiritual pelo
"dono do hinário". Representam, no contexto do Santo Daime, a
principal fonte de conhecimento sobre a doutrina. Os hinos estruturam a
experiência com a ayahuasca através de visões (mirações) e outras formas de
alterações cognitivas. Em outros contextos de consumo da ayahuasca, a música e
o canto também ocupam posições centrais como entre os curandeiros peruanos
(ícaros), na Barquinha (salmos) e na UDV (chamadas).
Texto publicado em: http://www.pucsp.br/rever/resenha/labate01.htm