Enciclopédia traça amplo panorama do consumo de drogas e bebidas

Adição complexa

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

O assunto está longe de ser ameno: drogas e substâncias equivalentes estão matando muita gente e arruinando vidas. Para ficar num único exemplo, o tabaco já fez mais vítimas que todas as guerras juntas: 5 milhões de mortos por ano.
A cifra aparece logo no início da notável "Pequena Enciclopédia de Drogas e Bebidas no Brasil". O modesto título não faz justiça à obra que não é pequena (só a bibliografia ocupa dez páginas) e não se refere só ao Brasil; o que temos aqui é um panorama do consumo de drogas, bebidas e substâncias similares em todo o mundo e ao longo de muito tempo. Em suma, é uma importante contribuição ao estudo das substâncias aditivas, feita por um autor com abundantes credenciais.
Henrique Carneiro, mestre e doutor em história social pela USP, é professor-adjunto no departamento de história da Universidade Federal de Ouro Preto (MG) e autor de vários livros no gênero, entre eles: "Afrodisíacos e Alucinógenos na Botânica e na Farmácia", "As Drogas no Mundo Moderno" (ambos pela ed. Xamã) e o recente "Comida e Sociedade - Uma História da Alimentação" (ed. Campus).

Aquilo que não se ingere
O plano do livro é excelente e abrangente. Começa com uma introdução geral que, só ela, já vale o volume. Conceituando droga como tudo o que se ingere e que não é alimento (ainda que chá, café e chocolate também estejam nesta categoria), Carneiro situa o uso dessas substâncias na vida das pessoas, estudando os fatores econômicos, políticos e culturais que condicionam seu uso. É uma abordagem, como seria de esperar, basicamente histórica; e aí os exemplos que se sucedem são extremamente reveladores.
A crescente importação de chá da China provocou um desequilíbrio na balança comercial da Inglaterra, que reagiu desencadeando contra os chineses as duas guerras do ópio; ou seja, o governo de Sua Majestade agiu como um cartel de drogas, enfiando a droga goela abaixo nos chineses. Mais adiante, outro exemplo, este interessando ao Brasil: "A correlação do álcool com a escravidão negra ocorre tanto na utilização da aguardente como moeda de escambo para o tráfico negreiro como na utilização dos escravos para o plantio da matéria-prima a ser destilada nos alambiques dos engenhos".
Ou seja: cachaça era usada para comprar escravos; escravos eram usados para produzir cana e cachaça. Um infernal círculo vicioso.
Já a condenação às drogas e substâncias similares pode ter uma conotação sanitária ou moral, mas, de novo, aí pesam fatores culturais: o capitalismo nascente, que valoriza o trabalho e o ascetismo, vê com desconfiança um gozo que é obtido sem esforço. À apresentação seguem-se as diferentes seções: fermentados alcoólicos, destilados alcoólicos, fumos e resinas, bebidas e mastigatórios excitantes, alucinógenos vegetais e outras substâncias.

Etimologias
A divisão é por itens, aqui justificando o termo enciclopédia. E de enciclopédia se trata: é incrível a quantidade de informações que esta obra nos fornece sem nos esmagar com a erudição e alternando-as com historinhas saborosas.
Descobrimos, inclusive, a origem de vários nomes: brandy vem do alemão "brand", que significa queimado, grogue vem de "grogram", capa de tecido encorpado usado pelo almirante inglês Vernon, ponche vem do hindi "panch", cinco, porque a bebida tinha cinco ingredientes. Em resumo: um livro em que o leitor aprende muito e aprende com muito prazer.

Publicado originalmente em: Folha de São Paulo, 22 de maio de 2005. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2205200520.htm