Resenha do livro A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos

de Beatriz Caiuby Labate

 

Rafael Guimarães dos Santos

Graduando em Ciências Biológicas – UniCEUB

    

 

Palavras-chave: 1. Ayahuasca 2. Etnobotânica 3. Psicofarmacologia 4. Rituais 5. Santo Daime (Culto)

 

Book Review - A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos

Key words:1. Ayahuasca 2. Ethnobotany 3. Psicopharmacology 4. Rituals 5. Santo Daime (Cult)

 

 

O uso da ayahuasca, bebida psicoativa de origem amazônica, composta pelos vegetais Banisteriopsis sp. (Malpigiácea), um cipó, misturado ou não a outras plantas, como a Psychotria viridis (Rubiacea), ou a Diplopteris cabrerana (Malpigiácea), sagrada para a maioria de seus usuários, inclusive para o grupo analisado neste livro, vem ganhando cada vez mais espaço no cenário de uso de psicoativos no Brasil e no mundo, fenômeno observado na expansão de suas filiais1 pelos centros urbanos de nosso país e do exterior. Vem crescendo também o interesse pelas formas de uso desta bebida, o que pode ser observado em sua crescente presença em publicações acadêmicas.

            Em seu recente livro A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos, Bia Labate2 descreve com maestria os caminhos que esta planta-professora, vem fazendo, desde o xamanismo amazônico, passando pelo vegetalismo praticado no Peru e Colômbia e pelos diversos grupos religiosos brasileiros que fazem uso dela. Finalmente, chegando na utilização nas grandes cidades brasileiras, onde fez seu  trabalho de campo, a autora realiza  a etnografia de um grupo de moradores de São Paulo, que sincretizam as diversas práticas e crenças de diferentes religiões/grupos ayahuasqueiros (Santo Daime, União do Vegetal, Barquinha, curandeiros peruanos, etc), num contexto urbano, com influências da Nova Era, Psicologia Transpessoal, Orientalismos e Terapias alternativas.

            Este estudo dá margem para diversas reflexões sobre temas caros para a Antropologia. A autora comenta, por exemplo, as dificuldades ao interpretar os mitos indígenas, a grande quantidade de informações circulando nos dificultando de distinguir o conceito culto do leigo, e qual o papel do pesquisador ao estudar um grupo que utiliza um psicoativo para realizar seus rituais. Em seu trabalho de campo, Labate optou pela observação participante e discute as dificuldades do papel do pesquisador no meio pesquisado e entre os sujeitos da pesquisa. Também procurou atuar socialmente na medida em que se esforçou para auxiliar a legitimação do grupo onde realizou sua pesquisa. Este realizava uma “nova” modalidade de uso da ayahuasca, que se localizava entre o referencial floresta-uso sagrado e o outro extremo cidade-uso profano. As demais áreas correlatas não ficam para trás. Na Etnobotânica, a autora dá direções de novas pesquisas, como a sugestão de comparar as nomenclaturas indígenas, caboclas e das próprias religiões ayahuasqueiras brasileiras com as classificações botânicas. Os índios desenvolvem um conhecimento/ciência sobre a fauna e flora da floresta que muitos menosprezam. Entre eles, existem inúmeras classificações para as diferentes misturas capazes de serem realizadas com o cipó da ayahuasca como base. Somos ainda ignorantes no conhecimento da farmacologia, psicofarmacologia e sistemática de grande parte destas plantas sagradas.

Embora existam autores que ainda enxergam as práticas envolvendo o transe, a possessão, e a ingestão ritualizada de psicoativos como algo, necessariamente, patológico, autoridades no assunto vem demonstrando a cada vez mais evidente influência do set (características do indivíduo) e do setting (o meio onde se realiza o ritual ou prática terapêutica e/ou religiosa). Vale lembrar que apesar do o antropólogo Claude Lévi-Strauss já  ter argumentado que os indígenas e seus xamãs não são loucos, e do também antropólogo  Edward MacRae, um pioneiro nos estudos do uso da ayahuasca e outras plantas que produzem estados alterados de consciência, já ter descrito com elegância a influência dos mecanismos sociais e culturais na experiência com as substâncias psicoativas, ainda encontramos trabalhos tratando o estado mental produzido ou não (incorporações, presentes nos cultos afro-brasileiros, por exemplo) pela ingestão de substâncias psicoativas como sendo, necessariamente, um estado mental patológico.

            Apesar de não ser o enfoque do livro em questão, não podem deixar de ser mencionadas as promissoras aplicações da ayahuasca nas hard sciences (neurofisiologia, neuropsicofarmacologia, fitoquímica, química orgânica, etc)3. Além, é claro, da religião, da ecologia e da psiquiatria, para citar apenas mais algumas áreas de interesse. Já para a psicologia, um sem número de interconexões pode ser feito, entre eles, o aprofundamento das questões envolvendo psicopatologias como a adicção, as fobias sociais e tantas outras4.

            O livro traz à tona questões e inovações que instigam os pesquisadores interessados no caminho do conhecimento sobre os enteógenos5 .

Mostra-nos as riquezas das reinterpretações e recombinações de técnicas e tradições as mais variadas - candomblé, umbanda, esoterismo, xamanismo, psicologia, etc – com as artes, música, teatro, literatura e com a ecologia. Trata também de incorporação e  transe. O livro aborda ainda a relação cultura-pessoas-plantas6 e a questão das patentes7. Tudo isto maravilhosamente interpenetrados por inovações no campo do uso de psicoativos como o turismo psicodélico, a visão científica e intelectual dos psiconautas, workshops de plantas alteradoras da consciência, tratamento de moradores de rua, etc.

A questão do dinheiro dentro e entre os grupos - ou seja, como a ayahuasca é produzida, exportada, distribuída e servida – é descrita pela autora como não sendo um processo semelhante ao de circulação de mercadoria, já que se trata de um sacramento. Entre os grupos existe a circulação de bens, mas não visando à acumulação destes, e sim sua redistribuição no intuito de sustentar, por exemplo, as igrejas e os feitios (preparos da bebida), atividades estas que não saem do contexto ritual-sagrado, demonstrando a auto-suficiência dos grupos na administração dos suprimentos da bebida.

            Bia Labate caracteriza este universo como uma rede ayahuasqueira, onde informações, substâncias e pessoas estão em constantes movimento e inovação. A dicotomia uso sagrado-de raízes culturais é contrastada com o uso profano-da cidade, no que se refere ao uso de psicoativos ritualmente legitimados ou não. Muitos dos personagens do livro de Labate transitam por estas diferentes áreas criando e recriando novas modalidades de consumo do cipó dos mortos (um dos significados do termo quéchua da ayahuasca). As relações entre as diversas religiões ayahuasqueiras - que, segundo a autora, “se criticam entre si” - assim como o impacto ambiental que a coleta de matéria-prima para o feitio do chá pode causar são outras áreas que a autora comenta em sua obra.

            Para concluir, gostaria de comentar apenas mais uma das passagens abordadas no livro. A relação cérebro-cultura é abordada e questionada, quando a autora mostra os diferentes pontos de vista sobre se as imagens e visões percebidas pelas mais diferentes pessoas em várias partes do mundo são de origem biológica-fisiológica (ou seja, são as substâncias presentes no chá que, atuando em determinados receptores cerebrais produzem as visões, e elas são universais) ou cultural (como se a experiência fosse trazida à realidade mediada pelos costumes de um povo). Eu, assim como a autora, acredito que existe sim um componente (na verdade, vários!) biológico na experiência psicodélica,8  - mas a importância da tradução destas imagens, passa, necessariamente pela cultura.

            Enfim, uma planta usada em rituais de renascimento, cura e transe, mostra-se caminhando pelo mundo, como se ela possuísse uma inteligência própria. Espero que, com a leitura deste livro, um pouco mais de tolerância possa existir entre os que usam ou não a ayahuasca, bem como, como escreveu Edward MacRae, entre os próprios grupos ayahuasqueiros. Boa leitura.

 

 

1 Os maiores grupo religiosos que atualmente utilizam a ayahuasca como um sacramento são: Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU), Alto Santo; Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS); Centro Espírita e Culto de Oração Casa Jesus Fonte de Luz, Centro Espírita Fé, Luz, Amor e Caridade, etc (Barquinha) e União do Vegetal (UDV). Atualmente existem filiais destes grupos em todos os Estados brasileiros, nos EUA, Japão e em vários países da Europa. Para um estudo mais aprofundado sobre o tema, ver o livro O Uso Ritual da Ayahuasca, Mercado de Letras, 2004,, da mesma autora.

2 Além da pesquisa, tornou-se membro de uma das mais conhecidas religiões ayahuasqueiras, o Santo Daime, e mais, foi uma das organizadoras do I CURA- I Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca, realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp que gerou o livro O Uso Ritual da Ayahuasca.

3 Respectivamente: ciência que estuda as funções do cérebro; estuda a atuação de determinadas substâncias em lugares específicos do cérebro; estuda e isola substâncias presentes em plantas, além de testá-las em animais e,dependendo de sua possível utilidade, em humanos, visando a descoberta de novos medicamentos; área do conhecimento responsável pela síntese de novas moléculas.

4 Em um estudo intitulado “Projeto Hoasca”, realizado com um grupo de 15 indivíduos de uma filial da UDV, constatou-se que 11 destes haviam apresentado quadros de  psicopatologias como o consumo excessivo de álcool e anfetaminas e fobia social, quadros estes que foram totalmente redimidos após a filiação ao grupo religioso. Um estudo minucioso sobre as propriedades terapêuticas da ayahuasca ainda não foi realizado.

5 Deriva de entheos, palavra do grego antigo que significa literalmente “deus dentro”, “ter o divino dentro de si” e, como comenta MacRae, era utilizada para descrever o estado em que alguém se encontra quando inspirado ou possuído por um deus que entrou em seu corpo. Ainda segundo o mesmo autor, era aplicada aos transes proféticos, à paixão erótica e à criação artística, assim como aos ritos religiosos onde estados místicos eram experienciados através da ingestão de substâncias que partilhavam da essência divina.

6 Em sua dissertação de doutorado, Groisman cita o livro Plants, People and Culture, de Balick e Cox, que resumem os passos do trabalho do etnobotânico: (1) conhecimento tradicional das possibilidades terapêuticas de uma planta se acumula; (2) um curador usa as plantas em seus pacientes; (3) o curador comunica seu conhecimento para o cientista; (4) o cientista coleta e identifica a planta; (5) o cientista testa os extratos da planta em ensaios; (6) o cientista isola um composto puro; (7) o cientista determina a estrutura química da substância pura.

7 Como diz a autora, na década de 80 foi patenteada nos Estados Unidos a ibogaína, uma substância presente na planta Thabernante iboga, utilizada desde tempos remotos por alguns grupos da religião Bwiti, presentes no Gabão – são em torno de 1 milhão de seguidores – e que está sendo usada no tratamento de abuso de drogas nos EUA e Europa. No caso da ayahusca, um laboratório americano chegou a patenteá-la, mas organizações dos direitos indígenas brigaram pela causa e cancelaram a patente, já que se tratava de uma planta já conhecida e empregada pelos índios milenarmente. Atualmente, o laboratório pediu revisão do processo e parece que teve ganho de causa.

8 Outro dos termos criados para designar esta classe de substâncias. Este termo foi criado pelo psiquiatra Humphrey Osmond, que ministrou a mescalina, substância presente no cacto Peiote, para Aldous Huxley,  novelista que escreveu “As portas da percepção, o Céu e o Inferno”, baseado em suas experiências pessoais com o psicoativo, e quer dizer “manifestadoras da mente”.

 

 

Publicado originalmente em: http://www.terramistica.com.br/index.php?add=Artigos&file=article&sid=300&ch=4