As múltiplas faces de um enteógeno

Resenha de

LABATE, Beatriz Caiuby e ARAÚJO, Wladimyr Sena de (orgs.) O uso ritual da ayahuasca. São Paulo, Mercado de Letras/ FAPESP. 2002. 686 páginas.

 

            O debate sobre as íntimas relações entre religião e natureza nos leva a uma dimensão normalmente considerada com comedimento por pesquisadores e pensadores da área: os estados de transcendência típicos da experiência religiosa quando vividos em comunhão com elementos portadores de substâncias alteradoras de estados de consciência. A questão não é simples e tem muito de desconcertante. Implica, de fato, no reconhecimento da natureza com seus fungos, sementes, cipós, venenos animais e gases como legítima portadora de possibilidades de fruição do sagrado e de encontro com as esferas atribuídas às múltiplas formas da divindade. De um lado teríamos a perspectiva do atributo religioso, exclusivamente centrado nas possibilidades mentais e sociais dos seres humanos e, de outro, a constatação da força contemporânea de interações sociais que resignificam o contato com potências extra humanas. Divindades fluem de dentro da natureza, potencializadas nos corpos dos fiéis por práticas nas quais é indistinta a energia simbólica das orações da digestão alquímica de um chá fraternalmente distribuído àqueles que têm fé . Tudo seria mais fácil se estivéssemos falando exclusivamente de práticas circunscritas a núcleos sociais segmentares, objeto exclusivo de reflexões e descrições de etnógrafos, colocadas a uma boa e confortável distância, espacial e temporal, do que arrogantemente chamamos de “sociedades complexas”, mas não é o caso, embora de lá também tenhamos insistentes sinais para reconfiguramos nossas crenças sobre a condição humana e as noções que temos da religiosidade.

            Essa tensão, e tantas outras possíveis aos propósitos de cada pesquisador, encontra no livro organizado por Beatriz Labate e Wladimyr Araújo, O uso Ritual da Ayahuasca, uma alentadora possibilidade tratamento, em três planos que analiticamente tecem o volume e dizem respeito aos discursos possíveis sobre um objeto impossível de ser circunscrito a um único saber, dada sua inerente plasticidade. O primeiro plano enfoca, de início, a ayahuasca nos povos que ancestralmente a tomam como prática, os índios da Amazônia, e alguns dos seus vizinhos já não tão recentes da floresta, os seringueiros, agentes que, aliás, foram os responsáveis, historicamente, pela fusão da bebida com o imaginário católico popular. O outro grande plano reflete precisamente sobre a transformação da beberagem em procedimento fundamental de seitas religiosas, cujo alcance já há muito rompeu os territórios urbanos próximos à floresta difundindo-se para outros centros bem distantes dela. Por fim, temos o discurso médico e farmacológico sobre a ayahuasca incorporando também um tipo de investigação, já hoje clássico, na junção de psicoativos com a ciência de laboratório: o enquadramento da classe de experiências no campo dos estudos da mente.

            A matriz geradora dessa confluência, ou mesmo apenas do paralelismo, de distintas formas de pensar as faces dessa singular bebida, ela mesma um composto de dois vegetais, um cipó (Banisteriopsis caapi) e umas tantas folhas (Psychotria viridis), foi um congresso organizado pela autora do livro, o I CURA – Primeiro Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca,- evento que teve lugar nos dias 4 e 5 de novembro de1997, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, sob os auspícios do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da mesma universidade, apoiado pelo Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas. O livro, contudo, vai além do congresso e acrescenta um número considerável de ensaios de pesquisadores, que não estavam presentes ao I CURA. Como resultado final temos 25 textos, representando o sério esforço dos organizadores em tratar a multidisciplinaridade como uma proposta cujos resultados somados certamente escapam aos enquadramentos dominantes em cada olhar científico, e nos brindam, inclusive, com certos momentos de dissonância.

            No curto espaço de uma resenha é de todo impossível sintetizar um conjunto heterogêneo de ensaios, que perfaz 686 páginas, porém, seguindo a tripartição do livro e reconhecendo uma farta dose de subjetividade do resenhista, é possível dialogar com pontos representativos do trabalho. Começando pela Amazônia ocidental, ou seja, o enfoque etnográfico e etnobotânico do uso da banisteriopsis temos dois polos que dominam os ensaios. O primeiro é obviamente algo intrínseco à experiência religiosa, ou seja o trato da vida como um agir entre realidades, nas quais um mundo sensível, que chamaríamos de “a realidade” é apenas uma possibilidade intercambiável pelo descortinamento de universos plenos de seres e volições, que habitam a portentosa natureza, que envolve os povos da floresta. O segundo polo também se conecta com um dos processos mais elementares da religião, que consiste na diferenciação de certos agentes numa sociedade, portadores de uma carga invulgar de relações com as forças anímicas, que constituem todos os universos possíveis, isto é, aqueles que a antropologia classifica, com certa generalidade, de xamãs.

            Os problemas teóricos e de pesquisa empírica contidos nos pontos acima mencionadas não são de pequena monta. Cabe aqui tratar apenas de teoria, uma vez que o debate sobre a validade de se mapear relatos subjetivos de estados transcendentes, tendo como única ferramenta a narração de experiências praticamente insondáveis, é terrivelmente circular e esbarra em questões tão insolúveis quanto instigantes sobre linguagem e significação. A esse respeito, o ensaio de Esther Langdon, A tradição narrativa e aprendizagem com yagé entre os índios Siona da Colômbia, optou sabiamente pela arte ao convidar a leitura da narração de uma experiência como um poema e não simplesmente como dados carentes de olhar analítico. Infelizmente, olhando os textos no conjunto, nota-se que as conclusões mais freqüentes que os cientistas extraem dos ricos materiais que manipulam quase sempre são canônicas, do tipo: experiências coletivas de uso da ayahuasca são formas de atualização da herança do grupo, geram coesão, afirmam identidades, são instrumentos de controle social e coisas do gênero. Nada que Durkheim não concluiria sem sair do seu gabinete, dando a sensação de que não podemos crer que os significativos ganhos de pesquisa de campo tenham se traduzido em avanços consideráveis no plano conceitual.

            A tecitura de múltiplas realidades do universo nas quais sonhos são “mais reais” que o(s) mundo(s) da vigília leva a um dos temas caros ao imaginário contemporâneo, que usa esse lugar de reflexão fartamente na literatura filosófica e na produção da arte cinematográfica (sem nos esquecermos de antecedentes ilustres dessa formulação como a tradição órfica). Mas há uma diferença quase intransponível: enquanto supomos ordinariamente que a revelação de verdades superiores é afim com o encontro da felicidade e da plenitude, os relatos dos xamãs, que transitam constantemente pelas dobras da realidade, ao lado de descrições sublimes, são plenos de situações de dor, medo, escuridão traduzindo-se no plano físico por dores e enjôos, afinal há um corpo padecendo juntamente com o transe anímico. Um corpo que sinaliza para um plano de coerência e eficácia das experiências como observamos nos textos de Jaques Mabit Produção visionária da ayahuasca. Aliás, é profundamente estranho conceber que todas essas realidades podem ser apenas uma só, extensa e cheia de reentrâncias, que só habitadas por meio de transformações e perspectivas zoomórficas, disponíveis para os Xamãs, como sugere o apresentador do livro Mauro Almeida. A propósito o texto de Luís Eduardo Luna, Xamanismo amazônico, ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural, possibilita-nos olhar detidamente sobre as transformações que a um só tempo turvam e marcam o ancestral vínculo dos animais humanos em relação aos outros poderosos viventes da natureza. Nesse sentido, o médico colombiano Gérman Zuluaga, A cultura do yagé, um caminho de índios, propõe que a bebida é uma purga e como tal condição necessária à preparação do corpo, via vomitórios, para os vôos mais profundos do espírito.

No outro grande grupo de textos, e o mais extenso, encontram-se as investigações sobre a versão mais conhecida atualmente do consumo da ayahuasca, ou seja, sob a forma das religiões (ou seitas, cabe o debate) brasileiras que fundem o catolicismo popular com o uso da bebida. Elas foram geradas, sobretudo, a partir dos anos trinta pelo núcleo original fundado por iniciativa de Raimundo Irineu Serra em Rio Branco no Acre. Essa seção do livro é sem dúvida irretocável, no que diz respeito a retratar as feições históricas e as configurações atualizadas  das seitas “ayahuasqueiras”.

O texto de Beatriz Labate, A literatura brasileira sobre as religiões ayahuasqueiras,  fornece uma visão geral da produção acadêmica e não acadêmica sobre o tema, e levanta uma série de aspectos interessantes para se pensar que mesmo um objeto interdisciplinar tende a ser dominado por certos discursos específicos, como é o caso da ampla dominância da leitura antropológica (aliás perfeitamente compreensível), deixando lacunas historiográficas, demandas por estudos legais e mesmo clínicos a respeito do chá. Um ponto apenas sugerido pela autora mereceria maior reflexão: é possível separar nitidamente a produção acadêmica da literatura interna dessas igrejas, que cumpre função de autolegitimação? Esse não é um problema novo nas ciências sociais e, em especial, no trato com religiões, mas deve sempre ser lembrado.

            Um dos estudos esclarecedores da rota inicial das seitas do Santo Daime comparece no excelente artigo de Sandra Goulart, O contexto do surgimento do Santo Daime: formação da comunidade e do calendário ritual. A autora indica, com grande propriedade e reforçada por depoimentos, que a base inicial da agregação em torno do “padrinho Irineu” se deu no espaço rural, por requerimentos de natureza econômica, o mutirão, ampliado pela ancestral prática do compadrio e pelo culto comum aos santos cristãos. O que surge com uma peculiaridade ritual no Daime, marcando uma diferença com o racionalismo próprio de todas as grandes religiões, como o catolicismo, temos, no culto, uma disciplina estruturada pela forma da dança e do canto (os hinos), que alí não são complementos da palavra bíblica, como na missa, mas antes o processo mesmo de religar seres humanos como o poder transcendente.

            O texto de Fernando de la Rocque Couto, Santo Daime: rito da ordem, enfatiza a noção de limpeza e expulsão de seres indesejáveis no rito coletivo que ele chama, ao final, de “xamanismo coletivo”. Esse autor organiza sua argumentação no sentido de mostrar um ponto recorrente entre os intérpretes das religiões do Daime, quanto ao rigor e a ordenação dos procedimentos de ingestão da bebida, que se tornam fatores geradores de um curso que estrutura subjetivamente as alterações de consciência, domesticando e subentendo estados alucinógenos, rumo a um tipo de ascese simbólica. A noção de disciplina do corpo também é a chave de entrada usada por Arneide Cemin, Os rituais do Santo Daime: sistemas de montagem simbólicas, que trabalha uma visão geral e mesmo didática da doutrina e de suas práticas.

            Uma parte um tanto complexa do debate é posta na mesa pelo conjunto de textos que pontua o mais recente campo de atuação do chá, nas incontroláveis apropriações feitas pelas populações urbanas dos grandes centros. Estamos agora no mercado das religiões e consumidores individualizados e ocasionais, sem qualquer vínculo comunitário, são personagens comuns ao novo cenário, que impacto teremos nos rituais “originais”? Com um título algo militante, Um pleito pela tolerância entre as diferentes linhas ayahuasqueiras a partir de uma visão brasileira, Edward MacRae argumenta longamente contra a noção de “pureza”, que orienta as críticas feitas por defensores de tradições indígenas que olham para as religiões como o Daime sob a ótica de distorção de mitos originais. Se a premissa do entendimento das culturas é sua mobilidade intrínseca então ninguém deverá estranhar que o Daime ou a União Do Vegetal venham a ser considerados núcleos de uso legítimo do chá , se contrapostos à crescente versatilidade de suas apropriações urbanas, sobretudo por terapeutas holísticos. Santo Daime na Alemanha. Uma fruta proibida do Brasil no “mercado das religiões” , de Carsten Balzer mostra o movimento de expansão transnacional do uso da bebida e suas barreiras mais contundentes, na forma do conflito experimentado por eventuais usuários, que não sejam socialmente e subjetivamente preparados para uma experiência indissociável de certos latros rituais. Divergências de natureza conceitual quanto ao significado do cristianismo, por exemplo, foram decisivas para a geração de conflitos em certas experiências no campo religioso da Nova Era européia.

            Os interessados nas conjecturas relativas a aspectos médicos, psicocognitivos e farmacológicos da beberagem encontrarão uma seção inteira do livro dedicado a esse mundo, bem mais próximo do que se considera, em geral, ciência strictu sensu. Enfim, há que se assinalar que o volume organizado por Labate e Araújo é uma obra de referência já incontornável para estudiosos tanto dos usos da ayahuasca, quanto de temas conexos ligados ao êxtase, à força ordenadora de rituais, à resignificação de práticas culturais e tantas outras facetas, que emergem quando lidamos com fenômenos que marcam as múltiplas realidades que vivemos, quase simultaneamente, mesmo que nem sempre nos damos conta disso.

 

 Raul Francisco Magalhães

Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFJF

Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF

 

Publicada em: Numen Revista de Estudos e Pesquisa da Religião. V 6, N 2, JUL DEZ, 2003, pp. 141-147.