Marco Tromboni

Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ

LABATE, Beatriz C. e ARAÚJO, Wladimir S. (orgs.). 2002. O uso ritual da ayahuasca. Campinas, SP: FAPESP/Mercado das Letras. 686 pp.

 

Esta bem-vinda coletânea organizada por Beatriz C. Labate e Wladimir S. Araújo reúne uma produção expressiva de pesquisadores dedicados ao estudo da ayahuasca. São abordados seus aspectos farmacológicos, biomédicos e psicológicos; o uso tradicional da bebida por povos indígenas da Amazônia ocidental, curandeiros mestiços do sopé andino e comunidades de seringueiros no Brasil; ou ainda as novas religiões que projetaram seu emprego ritual para várias capitais brasileiras e muitos outros países. Trata-se de nada menos que 25 artigos, distribuídos por 686 páginas, envolvendo o trabalho de quarenta pesquisadores de diversas áreas do conhecimento: farmacologia, medicina, psicologia e, predominantemente, antropologia, em um projeto editorial ambicioso que pretendeu cobrir praticamente todo o espectro de abordagens contemporâneas do fenômeno. O propósito principal dos organizadores, de fato, foi fornecer uma visão de conjunto dessa produção de modo a revelar o "estado-da-arte".

 

O livro está dividido em três partes: I) "Ayahuasca entre os povos da floresta", com artigos atinentes às populações indígenas e a contextos "mestiços"; II) "As religiões ayahuasqueiras brasileiras", isto é, a União do Vegetal, o Santo Daime e a Barquinha; e III) "Os estudos farmacológicos, médicos e psicológicos da ayahuasca". A organização da primeira e terceira partes parece, no entanto, pensada em função de sua relação indireta com o tema da segunda, que ocupa metade do volume. Com efeito, sua temática, na qual reside a maior contribuição do livro, fora até o momento a menos favorecida em termos de publicação; os artigos aqui contidos derivam, em sua grande maioria, de dissertações e teses produzidas nos vinte últimos anos, facultando a um público mais amplo o acesso ao resultado de trabalhos até agora inéditos.

 

Se o livro de fato atinge plenamente o objetivo de revelar o estado-da-arte no campo, fá-lo porém ao custo de sacrificar um pouco a unidade e homogeneidade do conjunto. O desequilíbrio resultante reflete o desigual investimento de pesquisa despendido nos subcampos cobertos pelas diferentes partes. Naquela voltada para os povos da floresta, os quatro artigos dedicados à utilização da ayahuasca por grupos indígenas (Luz, Langdon, Keifenheim e Zaluaga) figuram sobretudo como uma pequena amostra de uma produção etnológica que, embora ainda longe de esgotada, é certamente mais numerosa e antiga do que todas as demais ­ se pensarmos nos conhecidos trabalhos de Gerardo Reichel-Dolmatoff, Stephen Hugh-Jones ou Pierre Chaumeil, entre outros. Trata-se de uma discussão de longa data, beneficiária do diálogo com toda a massa crítica acumulada pela etnologia indígena sul-americana, especialmente aquela dedicada ao estudo do xamanismo, apenas discretamente representada no livro. Aparentemente, a intenção dos organizadores ao incluir esses artigos foi a de, didaticamente, oferecer uma perspectiva mais ampla para os leitores primariamente interessados nas religiões descritas na segunda parte, obviamente o público-alvo principal do livro, por suposto pouco conhecedor dos usos indígenas e mestiços da bebida.

 

Com efeito, o primeiro artigo, de Pedro Luz, oferece convenientemente uma espécie de resenha dessa produção, procurando classificar especificidades do simbolismo associado ao uso da ayahuasca segundo se trate de povos de língua pano, aruak ou tukano, o que lhe impôs um grau elevado de generalização. O artigo de Esther Jean Langdon figura dentro da estratégia geral do livro como um exemplo de uso xamânico indígena da ayahuasca. O texto de Barbara Keifenheim, que oferece uma perspectiva teórica bastante inovadora, procura mostrar aspectos do uso da bebida ligados não diretamente ao xamanismo, mas sim a toda a cosmovisão dos Kaxinawa, entendida enquanto uma experiência sensorial do mundo intimamente associada às alterações perceptuais induzidas pela ingestão da ayahuasca. Já o artigo de Germán Zaluaga, médico colombiano, destoa bastante do conjunto, exibindo porém uma preocupação que atravessa praticamente todo o volume, qual seja, a questão da legitimidade do uso da bebida. O que lhe parece ser uma apropriação indevida do conhecimento indígena constitui o foco de sua preocupação, vazada em uma espécie de discurso antiassimilacionista que, em contradição com o propósito geral dos organizadores, revela uma mal disfarçada rejeição pela utilização da bebida fora dos contextos indígenas.

 

Os três artigos seguintes dessa parte enfocam as tradições mestiças. O texto do também médico Jacques Mabit caracteriza aspectos interessantes da produção visionária da bebida, apontando suas potencialidades terapêuticas, e propõe o diálogo entre a medicina e psicologia clínicas e as técnicas tradicionais dos curandeiros mestiços. Algo contraditoriamente, porém, prossegue na linha de condenação dos usos mais recentes, embora em tom mais discreto e mais generoso que Zaluaga, reservando aos médicos e outros profissionais de saúde o privilégio da inovação inspirada nas práticas e conceitos tradicionais amazônicos, em detrimento do que lhe parece um esvaziamento de seus fins terapêuticos por parte das religiões que perseguem, através da ayahuasca, novos caminhos espirituais. Luiz Eduardo Luna retoma a perspectiva antropológica ao sustentar o diálogo com a literatura etnológica sul-americana, voltando sua atenção, porém, para o uso da bebida pelos "vegetalistas", termo que designa os curandeiros mestiços dos sítios urbanos da Amazônia peruana. Sua preocupação particular é mostrar o trânsito operado pelo vegetalista entre o mundo natural e o humano, apoiado em dados iconográficos antropomórficos. O artigo de Mariana C. P. Franco e Osmildo S. da Conceição faz muito bem a transição para a segunda parte: tratando do uso da ayahuasca por seringueiros do Alto Juruá, aborda um contexto muito próximo social e culturalmente daquele em que se originaram as religiões ayahuasqueiras brasileiras, proximidade esta que tem ensejado inclusive um processo recente de introdução do Santo Daime na região.

 

Na segunda parte, o claro desequilíbrio na quantidade de artigos dedicados ao Santo Daime, largamente favorecido em relação à União do Vegetal e à Barquinha, reflete a realidade da produção contemporânea. Abre-se com um artigo de Beatriz Labate, que procura fazer o inventário mais completo possível da literatura dedicada a essas religiões, publicada ou não, incluindo tanto a produção acadêmica, classificada e comentada segundo os temas do sincretismo, xamanismo, cura e história das origens desses cultos, quanto uma florescente literatura nativa, classificada segundo a vertente religiosa a que pertence. Assim, o artigo funciona como uma espécie de segunda introdução, desta feita à Parte II.

 

Os sete artigos seguintes tratam do Santo Daime, a mais antiga e visível dentre as três religiões ayahuasqueiras brasileiras, ocupando volta e meia espaços na mídia. Os textos seguem aproximadamente o processo de sua expansão, desde a fundação, pelo migrante maranhense Raimundo Irineu Serra, Mestre Irineu, da comunidade religiosa do Alto Santo, em Rio Branco, no Acre, na primeira metade do século passado, e depois ao longo da história da disseminação, no Brasil e no exterior, do CEFLURIS (Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra), dissidência do Alto Santo, liderada por Sebastião Mota Melo, o Padrinho Sebastião, que introduziu algumas modificações mas manteve os principais elementos doutrinários e rituais da religião criada por Mestre Irineu. A perspectiva dos artigos dessa parte é eminentemente antropológica, abordando, sucessivamente: os rituais entendidos como técnicas corporais no sentido maussiano (Arneide B. Cemin); a relação entre o tipo de comunidade formada em torno dessa religião e seu calendário ritual com o catolicismo popular e o estilo e estética das festas de santos (Sandra L. Goulart); a caracterização desses rituais como uma inovadora forma de "xamanismo coletivo", pensado em termos de performance ritual (Fernando de la Rocque Couto); e uma tensão latente entre a possessão como uma espécie de proto-influência afro-brasileira sobre a formação desse culto e a "miração", associada ao vôo da alma, enquanto duas modalidades do xamanismo clássico (Clodomir Monteiro da Silva). Inclui também um relato fenomenológico, em primeira pessoa, do contato do antropólogo Walter Dias Jr. com o Santo Daime, com o sugestivo título "Diário de viagem", no qual o autor procura refletir sobre as possibilidades e os questionamentos abertos pelas experiências místicas induzidas pelo uso de substâncias psicoativas sobre os paradigmas aceitos pela ciência convencional.

 

Já o texto seguinte, de Maria Cristina Pelaez, também médica, retorna à argumentação terapêutica, desenvolvendo a noção de "cura espiritual". Recorre, para tanto, a conceitos da chamada psicologia transpessoal, vendo na doutrina e nos rituais do Santo Daime um substituto religioso e legal para os experimentos dos anos 60 e 70 com o uso terapêutico de drogas psicodélicas, desde então coibidas pelo establishment médico e proibidas pelo Estado. Exceto talvez por seu tom "alternativo", esse artigo também poderia figurar na parte III do livro. A questão da proibição das drogas pelo Estado é o pano de fundo do artigo do antropólogo Edward MacRae, que trata da ameaça representada por esse contexto sociopolítico para a manutenção da legalidade da prática dos rituais das religiões ayahuasqueiras brasileiras. Ele aponta para os pontos de tensão existentes entre essas práticas e os valores éticos e morais dominantes ­ tensão para cuja solução pouco ajudam as dissensões entre os grupos religiosos ayahuasqueiros, sempre tendentes à exacerbação de seus sectarismos doutrinários ­ e também, por outro lado, para as falácias culturalistas contidas no discurso daqueles que defendem a restrição da permissão do uso da ayahuasca apenas aos índios e curandeiros mestiços dos sopés andinos, supostamente mais "tradicionais". Com efeito, esse artigo sintetiza a linha argumentativa implícita na estruturação de todo o livro pelos organizadores, embora estes tenham aberto também espaço, como vimos, para vozes dissonantes. Essa dissonância reaparece no artigo de Carsten Balzer, um estudo de caso de uma das tentativas de introdução do Santo Daime na Alemanha, a partir do contexto das "feiras esotéricas" e "workshops" de terapias "alternativas" no estilo New Age, o único que aborda a introdução recente dessa religião em países completamente estrangeiros a suas origens indígenas e caboclas.

 

O artigo de Wladimir S. Araújo é o único no livro a tratar da Barquinha, a menor das três religiões ayahuasqueiras em termos de adeptos (umas poucas centenas), praticamente restrita à cidade de Rio Branco. Eminentemente descritivo e próximo das categorias nativas, funciona muito bem como primeira apresentação a uma religião até agora praticamente desconhecida, porém muito peculiar na combinação de elementos do catolicismo popular, da religiosidade afro-brasileira e da mítica cabocla amazônica. Três artigos tratam da União do Vegetal, que, embora muito menos exposta à opinião pública que o Santo Daime, é mais difundida e conta com maior número de adeptos. De fato, seus dirigentes, ao longo de seus cerca de quarenta anos de existência, parecem ter feito uma opção deliberada pela discrição, cautela que se refletiu também em um controle muito estrito sobre atividades de pesquisa independentes, uma política que só agora parece estar mudando de rumo. Este é precisamente o problema do primeiro desses artigos, que, embora informativo, é excessivamente marcado por um tom de documento doutrinário oficial, ainda que o pertencimento religioso de seus autores não devesse em princípio constituir impedimento para um estudo mais imparcial. O artigo seguinte, "José Gabriel da Costa: trajetória de um brasileiro, mestre e autor da União do Vegetal", de Sérgio Brissac, por outro lado, não sofre desse tipo de limitação, procurando extrair da biografia do fundador elementos que permitem situar histórica e culturalmente o processo de constituição de seus fundamentos doutrinários e rituais. De fato, a recente dissertação de mestrado da qual deriva esse artigo é, sem dúvida, o primeiro estudo independente mais aprofundado acerca dessa religião, sendo contudo fundamental que novos investimentos de pesquisa sejam feitos para que se possa conhecer melhor essa que é, dentre as três religiões ayahuasqueiras brasileiras, a maior, mais organizada e de crescimento mais consistente. Por fim, o último artigo dessa parte, de Afrânio P. de Andrade, perde-se infelizmente em um emaranhado de perorações teológicas e juízos de valor acerca do etnocentrismo doutrinário da União do Vegetal, como se esta não fosse a virtude mais bem repartida entre todas as religiões.

 

A parte III do livro compreende estudos farmacológicos, médicos e psicológicos da ayahuasca. Os três primeiros textos derivam de um mesmo grande projeto de pesquisa encomendado pela União do Vegetal e desenvolvido por uma equipe internacional de pesquisadores pertencentes a quinze instituições brasileiras, americanas e finlandesas, cujo objetivo maior foi apontar, preliminarmente, os possíveis benefícios e/ou malefícios físicos e psicológicos do consumo contínuo e prolongado da ayahuasca. De interesse lateral para a antropologia, esses artigos corroboram a mencionada preocupação implícita dos organizadores com a questão da legitimidade e legalidade do uso ritual da ayahuasca. O quarto artigo dessa parte, "A ayahuasca e o estudo da mente",de Benny Shanon, estuda a produção visionária decorrente da ingestão da ayahuasca sob a ótica da psicologia cognitiva, e pretende estabelecer um domínio específico, qual seja, o das experiências pessoais sob efeito da bebida, para a abordagem psicológica, questionando os limites das abordagens predominantes até o momento, isto é, a antropológica e a das ciências naturais. Embora seja duvidoso que o domínio das experiências pessoais esteja fora do âmbito das ciências sociais, assim como pareça um tanto apressado o proposto universalismo dos parâmetros cognitivos baseados em pressupostos biológicos, o artigo tem o mérito de indicar algumas contribuições possíveis da ayahuasca para o estudo da mente, particularmente a possibilidade da existência do que o autor chama de "comunhões suprapessoais no conteúdo das visões". Finalmente, encerrando o livro, está o artigo de Jonathan Ott, o qual aborda a farmacodinâmica de diversos compostos produzidos a partir de dezenas de diferentes plantas que contêm os mesmos princípios ativos (e inclusive de compostos de plantas juntamente com substâncias sintetizadas em laboratório) capazes de produzir o "efeito ayahuasca", isto é, presumidamente, o mesmo efeito visionário produzido pela combinação das plantas tradicionalmente usadas na preparação da ayahuasca utilizada pelos grupos descritos no restante do livro.

 

No conjunto, o volume traz uma avalanche de informações relevantes sobre as temáticas de suas diferentes partes, capaz de interessar leitores em vários domínios de conhecimento, constituindo-se como uma obra de referência sobre os usos rituais da ayahuasca, de grande utilidade para um público diversificado.

 

Publicado originalmente em: TROMBONI, Marco. O uso ritual da ayahuasca. Mana, Oct. 2003, vol.9, no.2, p.211-215. ISSN 0104-9313.