Descontrole controlado, uma experiência

no ritual do Santo Daime

 

Marcus Vinícius Carvalho Garcia

 

Não sei se tenho autoridade para versar sobre um assunto tão profundo e extenso como é o Santo Daime. Mas, a autoridade parte do respeito e admiração pela doutrina. Acredito, portanto, poder, na qualidade de neófito, abordar o tema, sem maiores pretensões senão a de tentar relatar minha própria experiência que, salientemos, é apenas mais uma.

Dia 27 de Fevereiro de 99, dia de São Miguel, um dos santos que, entre outros, como São João Batista, São Pedro e Santo Antônio fazem parte do panteão espiritual da doutrina sincrética chamada de Santo Daime: culto religioso nascido no coração da floresta amazônica e que tem como característica principal a ingestão, por parte de seus adeptos, de uma bebida sagrada cujo nome original é ayahuasca, o vinho da alma. Dia de trabalho de mesa branca, de banca espírita, apadrinhada por duas entidades: o Professor Antônio Jorge e o Dr. Bezerra de Menezes, este último já bastante conhecido nos cultos do espiritismo. Dia de entrega espiritual, busca de harmonia com a natureza, com as forças espirituais, de praticar o diálogo canalizado com as divindades e, se possível, receber os ensinamentos para a vida. Dia de contemplar a beleza de um templo maravilhoso, de cor ocre, de madeira, que harmoniza com a tonalidade do próprio vinho das almas. Ali, naquela Igreja envolta por petúnias, lírios, rosas e árvores nativas do cerrado; no horizonte, pela vista privilegiada da Capital Federal; e no céu, pela luz acolhedora da lua. Ali, um cenário perfeito para o desenvolvimento da performance ritual, que levará a estados sensório alterados, à expansão da consciência, à aproximação com aquilo que chamam de divino. Lugar em que as forças ameríndias, africanas, brasileiras e orientais dão as mãos e, num contexto da cultura e simbolismo cristãos atuam nos corpos e espíritos que se dispõem a recebê-los. Lugar no qual as músicas entoadas são como mantras, agem em esferas profundas de nossa percepção e abrem os canais, as porteiras que dividem o consciente e o supraconsciente, a racionalidade e a irracionalidade. São melodias simples, diretas, com mensagens que elevam a alma, que tocam o coração. Hinos advindos do astral, recebidos pelos aparelhos (membros participantes) e socializados por todos durante o ritual. Todos cantam, todos participam.

Como o trabalho de hoje é de linha espírita, seu encaminhamento se procede com o intuito de fazer atuar as entidades que o caracterizam. Os hinos são especiais e fazem, em sua maioria, referência aos orixás, às personalidades da umbanda: Xangô, Oxum, Oxalá, à Rainha Yemanjá. Roga-se pela atuação dos Pretos Velhos, dos Cabôclos. Os médiuns ali presentes se empreendem numa corrente de energia e vão incorporando um a um, cada um de sua maneira. É um espetáculo performático, vê-se claramente a incorporação, a mudança na expressão facial, a emissão de ruídos, algumas pessoas chegam a cair no chão, falam com a voz alterada. Parecem não ter controle, mas para quê controle? A mediunidade é uma condição, como o próprio nome diz, de entreposto, meio. Existem pessoas mais propensas em manifestá-la. O trabalho espiritual canalizado, orientado só a desenvolve mais. O descontrole é direcionado, tem um fim em si e acontece segundo padrões rituais. Percebe-se, na observação participante, que a incorporação acontece em momentos específicos quando são invocadas as entidades. Como se fosse uma onda, a energia vai se disseminando na corrente, como se atravessasse cada um dos participantes dispostos lado a lado. Em alguns desses, ela parece estacionar, então os corpos começam a estremecer, realizar movimentos aleatórios, balançar, se debater no ritmo sincopado do atabaque que acompanha as evocações, os hinos, tudo ao mesmo tempo. A gama de informações que o cérebro recebe ultrapassa a velocidade normal do raciocínio. Tem-se a impressão de que somos meros artificies, pecinhas de um grande oráculo cósmico, entregues aos auspícios de forças extrasensoriais. Indivíduos que recebem os ensinamentos esotéricos e que tem o compromisso de praticá-los no cotidiano sob a égide do Amor, da Verdade, da Justiça e da Harmonia -palavras chaves dessa linha de trabalho espiritual.

O ritual acontece de forma cíclica, começa com as rezas tradicionais (Ave Maria e Pai Nosso) que são executadas nos moldes do catolicismo. Logo é iniciada a abertura da banca espírita que conta com um roteiro de hinos entoados em uma seqüência própria. Como já fora dito, nesse momento, algumas entidades são invocadas, e elas "descem" e incorporam em alguns aparelhos mais desenvolvidos e propensos à recepção. Terminada a sessão espírita, realiza-se novamente uma seqüência de hinos tradicionais de outras linhas de trabalhos espirituais da doutrina.  Depois é cantado o hinário (coleção de hinos) "O Cruzeirinho" do Mestre Raimundo Irineu Serra, fundador da doutrina. Esses hinos têm, de forma geral, um caráter iniciático, e possuem as mensagens mais generalizantes sobre o caráter do trabalho com o Daime. E, por fim, encerra-se com a Ave Maria e o Pai Nosso novamente. Todo o processo dura cerca de seis horas corridas, e foram feitos quatro despachos do Santo Daime, momentos ímpares onde os participantes comungam da bebida. Percebe-se, ao final, a sensação de cansaço, mas de extrema positividade e alegria que perpassa a todos os participantes.

Está finalizada a primeira parte do trabalho, a próxima consiste na prática cotidiana dos ensinamentos recebidos, que acreditamos ser a mais importante.

Voltando para casa dirigindo, acendo um cigarro e muitos questionamentos emergem, o lado racional vai aumentando à medida que a cidade vai se aproximando. É como se tivesse feito uma viagem com minhas próprias asas para muito longe, conhecido várias coisas, experimentado sensações que esse lado não decodifica, mas que sabe ser profundo e válido. Experiência esta recomendável a qualquer um. Afinal, está a nosso alcance.